sexta-feira, 22 de março de 2013

A inscrição de Lamas de Moledo 

(Castro Daire) 

 

Localizada num vale aberto, nas imediações da povoação de Lamas, perto de Moledo (Castro Daire), esta inscrição encontra-se gravada num grande penedo, actualmente incorporado na parede de um palheiro e deslocado da sua posição original (fig.3). A primeira referência conhecida procede de C. H. Balmori, que a publica em 1935.
RVFINVS . ET/ TIRO SCRIP/ SERVNT/ VEAMINICORI/ DOENTI/ AMVCOM (uel ANVCOM, ANCOM, ANGOM)/ LAMATICOM (uel - GOM)/ CROVGEAI MAGA/ REAICOI. PETRANIOI (uel PETRAVIOI) . T(uel R)/ ADOM . PORGOM IOVEA/. CAIELOBRIGOI
Trad.: "Rufino e Tiro escreveram: os Veaminicos oferecem um amucos/ anucos(?) lamatico(?) a Crouga Magareaico, a Petranio (?) um t(...)ados (?), um porco a Jóvea Caelóbrigo"
Apesar do texto estar profundamente gravado, a utilização de nexos manifestamente equívocos coloca algumas dúvidas de leitura (Guerra, 1998: 236). Toda a interpretação do texto é, aliás, particularmente difícil, sobretudo no que toca a identificar expressões como ancom na l.6, lamaticom na l.7 e petrauioi ou petranioi t[...]adom na l.9 e a individualizar as divindades mencionadas. O facto do texto ter sido gravado por dois indivíduos com nomes latinos, talvez possa explicar a correcta forma verbal scripserunt e a posterior "indecisão" no texto em língua lusitana que certamente lhes era ditado pelos dedicantes. Quer a referência ao nome dos lapidicidas, quer a utilização do verbo latino scribo e a presença de Iovea, parecem situar esta inscrição numa cronologia posterior à do Cabeço das Fráguas, integralmente escrita em língua lusitana.



Considera-se aqui geralmente a presença de três divindades: Crougeai Magareaicoi, Petranioi e Iovea(i) Caelobrigoi. Buá Carballo (1998: 437) adverte para a improbabilidade de Iovea Caeilobrigoi constituir uma sequência teonímica, isto porque mesmo admitindo a restituição Ioveai, não haveria concordância gramatical entre os dois elementos. Chamamos, no entanto a atenção para o facto de assim sendo, o mesmo dever ser considerado para Crougeai Magareaicoi, que apresenta uma sequência idêntica, pelo que tomaremos ambos como sequências teonímicas.

Crouga encontra-se atestado em três outras dedicatórias, podendo-se relacionar etimologicamente com *krouka, "sepultura, monte de pedras, altar" e apontar-lhe uma eventual conotação ctónica.
 Magareaicos, sugere por sua vez, a aproximação a mager/maga, "gerar, nutrir" (Curado, 1989: 352), constituindo, todavia, um adjectivo de carácter toponímico, com possível pervivência no actual do Alto da Maga, nas proximidades. A esta divindade é oferecido um anucom lamaticom, que nos é impossível identificar. Patrício Curado (idem) coloca a este respeito uma proposta interessante: a leitura de avvcom, forma que poderá ser correlacionada com a voz indo-europeia *ávi-; *avika, "cordeiro".
A outra divindade, Petranioi, tem um sentido totalmente enigmático, apenas se podendo assinalar a sua filiação na raiz *petr-, "quatro". Uma forma semelhante parece encontrar-se também na transcrição que Masdeu faz da inscrição I de Arroyo de la Luz em 1800, petanim, sendo possivel que originalmente estivesse gravado algo como pet[r]anim. A forma t[...]adom parece estar relacionada com este possível teónimo, mas é também de difícil identificação.

Finalmente, temos Iovea Caeilobrigoi, a quem é oferecido um porco. Tal como Crouga - a tratar-se efectivamente de uma sequência teonímica -, apresenta um epíteto tópico, possivelmente relacionado com a actual Cela. Iovea constituirá uma corrupção de Iovi, referindo-se ao deus supremo romano ou a uma entidade indígena identificável a este.

Em suma, teríamos nesta inscrição a referência a pelo menos uma divindade de possível conotação agrária - Crouga -, cuja oferenda não é possível identificar, e uma divindade de eventual carácter soberano, à qual, todavia, é oferecido um porco. A comprovar-se esta interpretação, mais uma vez o rito lusitano mostraria a ausência da ordem sacrificial característica das cerimónias védica e romana. O presente texto não permite, porém, avançar qualquer proposta minimamente segura. A possível relação com os topónimos Cela e Alto da Maga, é em última análise sugestiva, parecendo adscrever as duas entidades divinas a comunidades diferentes o que daria lugar a interessantes conjecturas acerca do possível carácter agregador do ritual e da sua relevância na dimensão religiosa dessas populações.

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